Comunicado Conjunto, Maio de 2021 COPOAP – Coletivo Pró-Organização Anarquista em Portugal » embate-copoap.weebly.com « UNIPA – União Popular Anarquista (Brasil) » uniaoanarquista.wordpress.com « “O que unicamente pode salvar a França, em meio aos perigos mortais, internos e externos, que agora a ameaça, é a sublevação espontânea e livre, livre de compromissos, apaixonada, anárquica e destrutiva, das massas populares de todo o território francês. […] Creio que as únicas classes agora capazes de uma insurreição tão poderosa são os trabalhadores e os camponeses” (BAKUNIN, 1907: 215-216). Este ano celebram-se os 150 anos da Comuna de Paris (1871-2021), um evento da maior importância para a luta internacional da classe trabalhadora. Durante a Comuna e em suas posteriores análises, ficou evidente as divisões teórico-políticas no movimento dos trabalhadores, principalmente na questão do papel do Estado e da guerra na revolução. Esta cisão teórica se desenvolve na divisão e fim da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) um ano depois dos acontecimentos da Comuna de Paris, ganha então a sua prova prática. Esta discussão é, em geral, largamente ignorada pela maioria das organizações e correntes políticas que agora comemoram a data, porém é essencial para compreender as atuais tarefas da classe trabalhadora e das organizações revolucionárias. Articulando sua teoria da questão nacional e da luta de classes, Bakunin apresenta uma análise e uma estratégia fundamental durante a Comuna de Paris. Elas foram uma resposta aos desdobramentos da Guerra por razão de Conquista: a Guerra Franco-Prussiana de 1870-1871. Com a invasão da França pelo exército prussiano, a França tinha sua derrota eminente. Qual foi a política apontada por Bakunin para combater a invasão prussiana? A revolução social na França – o armamento geral do campesinato e do operariado para tomar as cidades e campos e expulsar a invasão prussiana, enterrando juntas a Pátria Oficial francesa, o Imperador e todas as classes privilegiadas do país. Qual foi a política dos republicanos e da “esquerda eleitoral”? Foi contra a revolução, que em sua visão representaria a divisão e o enfraquecimento da França Oficial1, defenderam o parlamento (Assembleia Nacional) e foram contra o armamento geral do povo. Bakunin, em “Cartas a um francês” (1870), analisa os votos dos parlamentares da dita esquerda francesa que votaram contra a legalização e venda de armas e munições durante o período, posição que avalia como francamente reacionária, que visava manter o monopólio da violência pelo Estado e deixava o povo desarmado frente a invasão. O que Bakunin apontou era que as classes dominantes da França encaminhavam a capitulação frente a invasão prussiana, o que se consolidou com o armistício em 1871. Para tais classes, a dominação prussiana seria um mal menor em comparação ao de armar o povo e correr o risco de uma insurreição popular. A dominação prussiana manteria a propriedade e a ordem na França subordinada, e os encargos dessa dominação seriam jogados sobre a exploração do povo francês, como de fato ocorreu com as pesadas taxas impostas pelo nascente Império Alemão, pagas pelo proletariado. Nesse sentido, a burguesia, a aristocracia e o Império, toda a França Oficial, agiram de maneira entreguista, isto é, capitulando aos interesses das potências externas em detrimento dos interesses do seu próprio povo. Porém, frente ao armistício assinado pelo parlamento, Paris se insurgiu; e diante da insurreição popular, a Assembleia Nacional, de composição monárquico-burguesa, declarou a repressão ao movimento, marcando a ruptura completa e a guerra entre a Comuna de Paris e a França Oficial mancomunada com o exército prussiano. Transformar a guerra imperialista em guerra civil Bakunin defendeu que a guerra imperialista deveria ser transformada em guerra civil, como a única forma de defender a França Popular e vencer os Impérios. Tal política mais tarde ficaria célebre nas frases de Lenin, que guiaram a revolução russa, “Transformar a guerra imperialista em guerra civil”, e se refere claramente à política da Comuna2, que tinha sido elaborada politicamente por Bakunin antes, mesmo do levante communard, no documento “Cartas a um Francês” (1870). Neste escrito, faz uma detalhada análise da conjuntura francesa apontando o caminho da guerra civil/popular, do armamento geral do povo, da unidade entre operários e camponeses, da organização e federação de comunas populares, como as únicas saídas frente o avanço do imperialismo e da barbárie. Essa linha anarquista diz respeito à relação existente entre a política anti-imperialista e a luta de classes. Polemizando com os bakuninistas, hegemônicos no movimento operário na Itália dos anos 1870, o nacionalista italiano Giuseppe Mazzini (1805-1872) afirmava que o exemplo da Comuna de Paris trazia a desunião para a Nação por estar pautado em uma divisão entre interesses, ou seja, na luta de classes. Para Mazzini, o povo italiano deveria esquecer suas aspirações particulares em nome do “interesse geral” da Pátria. Bakunin, ao contrário de Mazzini, defende que este antagonismo de classe era natural e salutar, tendo em vista que toda a riqueza da nação havia sido produzida a partir da exploração do capital sobre o trabalho. Assim, a exploração e a aliança internacional dos capitalistas tinha como contraponto uma necessária e natural aliança dos trabalhadores, demarcando uma situação social antagônica. A internacionalização das greves era um sintoma desse processo. Outro aspecto dessa questão é que o “mundo do trabalho” se afirmava como a Pátria real dos trabalhadores. Bakunin aponta aqui um elemento que aparece em todo seu pensamento: a pátria real e material como sinônimo dos interesses em comum. Assim, as classes trabalhadoras e povos dos diferentes países estavam muito mais próximos entre si do que com a burguesia de seus próprios países. Como vemos no trecho abaixo sobre a Comuna de Paris: “[…] as fronteiras de sua pátria ampliaram-se, a ponto de englobar hoje, o proletariado de todo o mundo, oposto ao conjunto da burguesia, inclusive evidentemente, a burguesia francesa. As declarações da Comuna de Paris são, quanto a isso, categóricas; e as simpatias hoje expressas com tanta clareza pelos trabalhadores franceses com a Revolução Espanhola, sobretudo na França meridional, onde se constata uma nítida vontade do proletariado de aliar-se de modo fraternal ao proletariado espanhol e até formar com ele uma Federação Popular, fundamentada no trabalho livre e na propriedade coletiva, não obstante todas as diferenças nacionais e as fronteiras estatais” (BAKUNIN, 2003, p. 45-46) AIT e Comuna O papel cumprido na Comuna pela Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), e pelos anarquistas, tem sido sistemicamente negligenciado pela historiografia hegemônica, em particular no que refere ao trabalho dos associados à Aliança da Democracia Socialista. A Comuna de París se insere numa longa jornada de lutas laborais na França e confrontos entre povo e classes dominantes durante a II República e III Império. Além disso, o episódio da Comuna não se limita à experiência revolucionaria de Paris, já que entre os anos 1870-71 quase uma dezena de cidades da França se insurgiram formando comunas com um programa anti-estatista e em defesa do autogoverno dos trabalhadores. A primeira delas, a Comuna de Lyon, teve Bakunin como um de seus principais dinamizadores. A Revolução Burguesa de 1848 reinstalou a República na França. Inserido no conjunto de revoluções europeias nesse mesmo ano com larga adesão popular, apelidadas de “a primavera dos povos”, este regime teve uma duração de 4 anos, e rapidamente deixou o seu marco sangrento na repressão das e dos trabalhadores nos “dias de Junho”. A revolta do povo contra o fecho das Oficinas Nacionais, espaços de trabalho destinados aos desempregados, uma conquista do processo revolucionário, é brutalmente suprimida, contabilizando entre 1500 a 3000 mortos, que resistiram levantando barricadas em Paris. Abraçando os ensinamentos da consequência final da colaboração entre classes, o povo retira o apoio à República, que uma vez instável, vai cair nas mãos da reação monárquica com a formação do III Império, por um golpe de Estado de Napoleão III, constituindo um regime não menos anti-popular, mas mais sincero. Intensifica-se assim a construção de associações de trabalhadores, sociedades de resistência e apoio mútuo e clubes políticos por toda a França, mesmo quando estes foram considerados ilegais. Alguns destes grupos acabam por contribuir esforços na construção da AIT, que nasce fruto de correspondências e encontros internacionais operários datando de 1864. Crescem as primeiras seções locais e organizações aderentes, como é o caso da Federação das Associações de Trabalhadores Parisienses, fundada em 1869 com a contribuição de Eugene Varlin, partidário da Aliança. Simultaneamente, inicia-se através da propaganda socialista e congressos internacionais da AIT, a discussão em torno de pautas relativas às condições de trabalho, a promoção do cooperativismo, a supressão da propriedade privada do solo, as condições gerais de mulheres e crianças e a descriminação baseada na raça e cidadania. Estas mesmas pautas, e ainda outras mais radicais, viriam a figurar nos decretos e resoluções da Comuna de Paris. Além disso, a agitação panfletária e jornalística torna-se norma durante toda esta fase desde 1848 até 1872, nascendo e morrendo jornais de forma quase diária nos momentos de maior atividade. Um exemplo concreto é o caso emblemático do jornal “Le Cri du People”, responsável pela divulgação do programa da AIT, cujo editor, Jules Valles, era militante associado da AIT, e que viria posteriormente a se tornar o principal jornal da Comuna. Estima-se que a AIT em Paris, nos dias da Comuna, teria entre quinze militantes nucleares (Bakunin, 2006) a cinco dezenas já em 1871, mas se contabilizarmos todos os sócios de organizações laborais aderentes, temos de apontar para um número gigantescamente maior. Entre os delegados eleitos pelas municipalidades para o conselho da comuna, delegados estes revogáveis a qualquer momento, havia uma minoria socialista, mas que concentrava uma enorme força política. A maioria era formada por jacobinos-radicais. Estes, por consequência, formularam propostas apenas tão socialistas quanto possível na ótica de quem dois meses antes não se reveria nessa forma de pensamento (Bakunin, 2006). Contudo a realidade dos eventos moldou seu pensamento e serviu de laboratório para variadas teses. Ainda assim, o clima de improviso e a necessidade de uma organização sindical mais consolidada não permitiu ir além. A participação das mulheres anarquistas e da AIT foi decisiva, arrastando nos vários momentos para as associações e para as barricas multidões femininas. A participação das mulheres foi ainda presente nas comissões municipais e no próprio estopim revolucionário em 18 de março de 1871. A participação feminina nessa data pressionou a deserção de soldados que haviam sido enviados com ordens do governo para roubar a artilharia parisiense no decorrer do processo de paz com a Alemanha. Em vez de disparar sobre o povo, vários soldados desertaram em favor dos sublevados, alguns dos quais entregando seus oficiais à justiça popular. A exemplo da construção sindical de mulheres, a Seção Feminina da AIT enviou uma delegada, Elizabeth Dimitrieff, como representante à Comuna de Paris, para reafirmar a aliança popular com as e os sublevados. Juntamente a Nathalie Lemel, também da AIT, viria a construir a União de Mulheres pela defesa de Paris. Outra mulher revolucionária, Louise Michel, se converte em militante anarquista e coletivista no decorrer do processo insurrecional e contribuiu de forma incansável em diversas frentes, e mais notavelmente da União de Mulheres pela defesa de Paris, reivindicando direitos iguais enquanto proletárias, milicianas e não redutíveis a uma condição de donas de casa. Em suas palavras: “Eu desci do monte, com a minha espingarda sob o casaco, gritando: Traição! Nós pensávamos morrer pela liberdade. Nos sentíamos como se nossos pés não tocassem o chão. Se morrêssemos, Paris haveria se erguido. De repente, vi minha mãe perto de mim e senti uma terrível ansiedade, inquieta, tinha chegado, e todas as mulheres estavam lá. Interpondo-se entre nós e os militares, as mulheres lançaram-se sobre os canhões e metralhadoras” (MICHEL, 1973) Desta forma, pode-se dizer que o papel iniciador dos quadros da AIT e da Aliança nos movimentos, possibilitou a entusiástica adoção de várias das pautas centrais de seu programa pela Comuna de Paris, mas a não consolidação destes organismos dificultou a concretização mais promissora das tarefas a que se propunham. Ensinamentos da Comuna sobre Guerra e Revolução, Luta de Classes e Questão Nacional As posteriores situações revolucionárias, na Rússia (1917) e na Espanha (1936), expressam bem a necessidade de compreender a dialética entre Guerra e Revolução, e Luta de Classes e Questão Nacional, colocada pela teoria bakuninista. Ambos processos ocorreram em contextos de guerra imperialista (1ª e 2ª guerra mundial, respectivamente) e tiveram, como na Comuna, um grande apelo dos republicanos burgueses e da social-democracia pela “unidade nacional” contra a “ameaça externa” e a defesa de que a revolução deveria ser deixada para um momento posterior.
A vitória da revolução russa expressou, no primeiro momento, o que defendeu Bakunin décadas antes: que só a guerra popular anti-imperialista associada à revolução social, levantando as massas do campo e da cidade, teria força para instaurar uma nova sociedade socialista e barrar a guerra das potências imperialistas. O caso espanhol representou a outra versão, a política de colaboração entre trabalhadores e a burguesia republicana de “vencer a guerra para depois fazer a revolução”, o que levou a derrota tanto na guerra contra o fascismo quanto na revolução social. Essa mesma concepção está por trás dos clamores da social-democracia brasileira pela unificação de todos os esforços de luta para priorizar a derrota eleitoral do governo Bolsonaro, para que só depois se fale em revolução… se falam. Mas já sabemos que eles jamais falarão e que nem poderiam falar, pois as alianças parlamentares com a “burguesia democrática” sempre condenaram os trabalhadores a servir aos interesses burgueses e desviarem-se dos seus interesses particulares, de classe. Diante de tantos desafios no século XXI, como crises socioeconômicas e pandêmicas, ultramonopolismo de capitais e eminência de novas guerras imperiais-coloniais, os anarquistas revolucionários devem resgatar e aprofundar a nossa tradição de defesa socialista e anti-estatal das Comunas Populares de mais de 150 anos sem reduzi-la a “slogans” genéricos. Esse resgate deve formar parte de uma estratégia de reconstrução do movimento revolucionário de massas, com independência de classe, federalista e internacionalista, tal como na França de 1870; bem como a de reconstruir uma aliança internacional dos anarquistas revolucionários. Essa estratégia já encontra seus primeiros elementos postos na atualidade. Diferentes povos tradicionais e organizações proletárias estão se movendo no sentido da internacionalização das lutas por território e autonomia, por independência econômica e política. Nessa construção podemos olhar para o desenvolvimento do poder popular nos conselhos federais da Federação do Norte da Síria – Rojava, nos territórios autônomos zapatistas, nas frentes de resistência territorial Mapuche, entre outros levantes que se desenvolvem em diversas partes do mundo. Neles, a guerra por libertação se conjuga com a construção da autonomia territorial e do autogoverno dos trabalhadores, num processo similar ao dos trabalhadores insurgentes da Comuna de Paris. No Curdistão, os avanços levados a cabo pelo campo do confederalismo democrático mostram que a guerra e a revolução são tarefas que não podem ser tratadas em separado. Nas selvas de Chiapas, as comunas zapatistas formam uma base para a expansão e reorganização do movimento internacionalista dos trabalhadores. Em comum, estes movimentos entendem que a luta pela libertação dos povos é algo necessariamente internacionalista, impossível de ser bem sucedido de forma isolada, e apontam para soluções autônomas não estatais conectadas com táticas avançadas de autodefesa. Para nós, anarquistas revolucionários, é tempo de nos fincarmos nos nossos princípios teóricos forjados nas batalhas da classe trabalhadora, corroborados pelas experiências de luta contemporâneas. É tempo de superarmos os confusionismos que por tanto tempo negaram o cerne da teoria anarquista, e, armados com as ferramentas certas, reconstruirmos o movimento internacionalista dos trabalhadores. Os levantes anticoloniais contemporâneos que hoje configuram os frontes mais avançados das lutas dos trabalhadores, através de uma longa trajetória de tentativa e erro, chegaram, não por acaso, em conclusões muito similares às dos aliancistas nas análises dos fatos daquele maio de 1871 em Paris, onde os trabalhadores ousaram queimar os pilares da sua exploração e construir com as suas próprias mãos tudo aquilo que lhes diz respeito. Essa é nossa tarefa para honrar a memória da Comuna e, principalmente, organizar hoje a ação histórica de libertação para construir um presente e um futuro de Socialismo e Liberdade. Erguer centenas, milhares, milhões de Comunas no mundo! Referências: BAKUNIN, Mikhail. Oeuvres – Tomo II. Paris, Stock, 1907. (Biblioteque Sociologique, n° 38). BAKUNIN, Mikhail. Estatismo e Anarquia. São Paulo: Nu-Sol: Imaginário, 2003. BAKUNIN, Mikhail. A Comuna de Paris e a Noção de Estado. Verve. São Paulo, v. 10: pg. 75-100, 2006. Ler também: A Comuna de Paris e a Noção de Estado, por Mikhail Bakunin Série Biblioteca Anarquista - Vol.I por UNIPA - União Popular Anarquista
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February 2023
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